A Nova Lei n.º 14.118/2021 e seus Reflexos no Direito de Propriedade

 

Olá civilistas! De uma forma bem sintética, venho hoje discutir com vocês alguns aspectos da Lei n.º 14.118, de 12 de Janeiro de 2021. Esta recente lei instituiu o denominado “Programa Casa Verde e Amarela”, alterou algumas legislações, e, embora não tenha modificado expressamente nenhum dispositivo do Código Civil de 2002, sem dúvida trouxe importantes reflexos no Direito Civil, especialmente no tocante ao Direito de Propriedade e ao Direito de Família.

O “Programa Casa Verde e Amarela”, em conformidade com o artigo 1º da Lei, foi instituído com a finalidade de promover o direito à moradia a famílias residentes em áreas urbanas com renda mensal de até R$ 7.000,00 (sete mil reais) e a famílias residentes em áreas rurais com renda anual de até R$ 84.000,00 (oitenta e quatro mil reais), associado ao desenvolvimento econômico, à geração de trabalho e de renda e à elevação dos padrões de habitabilidade e de qualidade de vida da população urbana e rural.

Portanto, em um primeiro momento cabe esclarecer que a legislação, e consequentemente os dispositivos aqui discutidos, não têm aplicação para toda e qualquer propriedade. O âmbito de aplicação da lei se restringe apenas às propriedades urbanas e rurais adquiridas por famílias cuja renda incida nos limites acima descritos. Sendo assim, nota-se que a “mens legislatoris” (intenção do legislador) pretende alcançar as famílias que se encontram em situação de maior vulnerabilidade social, em moldes similares aos das legislações que instituíram o Programa “Minha Casa, Minha Vida”.

Os pontos mais polêmicos que serão aqui discutidos – e que incidem diretamente no instituto do Direito de Propriedade – concentram-se, especificamente, nos artigos 13 a 15 da nova lei, como demonstraremos a seguir.

O artigo 13 dispõe que “os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa Casa Verde e Amarela serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher e, na hipótese de esta ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1647, 1648 e 1649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)”.

Ainda, o parágrafo primeiro deste dispositivo ressalta que o contrato deve ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis competente – que, sabemos, é o do foro da localização do imóvel, sem a exigência de dados relativos ao cônjuge ou companheiro e ao regime de bens.

A exceção à exigência trazida no artigo 13 diz respeito aos contratos de financiamento firmados com recursos do FGTS – nesta situação, não se aplica esta preferência do registro em nome da mulher (vide parágrafo 2º do mesmo artigo).

Já o artigo 14 da mesma Lei estabelece que “nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS.”

O parágrafo único do artigo 14 se encarregou da exceção, dispondo que na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída.

Em seguida, o artigo 15 traz a possibilidade de que os prejuízos sofridos pelo cônjuge ou companheiro, em razão do disposto nos artigos anteriormente citados, sejam resolvidos em perdas e danos, aplicando-se portanto o instituto da responsabilidade civil, desde que presentes os seus pressupostos.

A partir de uma primeira leitura destes artigos, nota-se que serão inúmeras as discussões a serem travadas nos fóruns e Tribunais, inclusive acerca de uma possível inconstitucionalidade da lei, nos termos do artigo 5º, I da Constituição da República de 1988.

Para entender melhor, vejamos, em um exemplo concreto, o que irá ocorrer com a vigência da lei em questão: suponhamos que um casal tenha adquirido um bem imóvel, com os benefícios do Programa Casa Verde e Amarela, durante a constância do casamento ou da união. Este imóvel deverá ser PREFERENCIALMENTE registrado em nome da mulher. Caso esta mulher seja chefe de família – entendendo como “chefe de família” aquele que é responsável pela manutenção econômica e, consequentemente, pelo sustento da família, não é necessário SEQUER a outorga do cônjuge ou companheiro para a efetivação do contrato e do registro imobiliário, independentemente do regime de bens.

Caso este casal venha a se separar, divorciar, ou também nos casos de dissolução da união estável, a propriedade do imóvel adquirido por meio deste Programa deverá ser registrada em nome da mulher ou a ela transferida, independentemente do regime de bens, cabendo ao homem as perdas e danos em virtude de seu prejuízo. Lembrando que há duas exceções: nos casos em que o imóvel é obtido com recursos do FGTS, ou quando a guarda unilateral dos filhos pertença ao homem.

Em artigo publicado sobre o tema, o Professor Nelson Rosenvald apontou algumas reflexões de grande importância que devem ser feitas[1]. Destaco aqui duas delas. Primeiramente: esta preferência do registro em nome da mulher já havia sido prevista na Lei n.º 11.977/2009, que dispunha sobre o Programa Minha Casa Minha Vida, mais especificamente em seus artigos 35 e 35-A.  Portanto, nota-se que esta opção do legislador, que não é novidade, faz parte de uma política pública de incentivo ao bem estar da mulher, e do fomento à sua condição de agente econômico em uma sociedade na qual, historicamente, os poderes de chefia familiar eram concedidos tão somente aos homens.

Em segundo lugar, destaca-se a polêmica trazida pelo artigo 14 na situação em que a guarda dos filhos é transferida unilateralmente ao homem. Neste caso, inverte-se a titularidade do imóvel. Isto significa, na prática, que a guarda destes filhos poderá vir a ser disputada “a tapa” entre o casal, pois a guarda conferida ao homem (de forma exclusiva) terá como consequência a aquisição da titularidade do bem imóvel a seu favor. Neste ponto é que se afirma que a lei trouxe uma nova espécie de propriedade, a “propriedade cambiante”, devido à possibilidade de sucessivas alterações de sua titularidade.

Vejamos: a titularidade do bem será da mulher se a guarda dos filhos for comum ou exclusiva dela, mas será do homem caso a guarda dos filhos seja dele…podendo, no entanto, voltar a ser da mulher se esta guarda posteriormente for a ela atribuída! Bastante confuso, não?

De qualquer forma, fica aqui registrado um aspecto positivo da nova legislação: a política pública de proteção à mulher, especialmente as mulheres mais desfavorecidas do ponto de vista socioeconômico. Certamente, a titularidade da propriedade não concede somente dignidade às mulheres. Concede, também, o acesso ao crédito na sociedade, viabilizando a livre iniciativa destas mulheres, bem como o direito à manutenção do patrimônio em prol da família. Entretanto, resta agora aos Tribunais a difícil missão de interpretar, da forma mais justa e equilibrada possível, a aplicação destas regras no dia a dia das famílias.

 

[1] ROSENVALD, Nelson. A preferência da mulher no registro imobiliário – A lei 14.118/21. Disponível em https://www.colegioregistralrs.org.br/doutrinas/artigo-a-preferencia-da-mulher-no-registro-imobiliario-a-lei-14-118-21-por-nelson-rosenvald/. Acesso em 21 de janeiro de 2021.

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Simara Barreto
Simara Barreto
3 anos atrás

Assunto importantíssimo, mas me pareceu uma faca de dois gumes, se por um lado, garante a moradia da mulher e seus filhos, por outro, pode aumentar a violência e as ameaças contra ela por conta da propriedade ‘ flutuante’.

Amarilda Martins
Amarilda Martins
3 anos atrás

Inicialmente essa preferência do imóvel em favor da mulher apresenta-se como sendo uma boa ideia do poder legislativo, pensando em proteger a mulher, considerando por exemplo a diferença salarial, onde que efetivamente as mulheres ganham menos que os homens, ou ainda o fato de muitos homens abandonar a família, deixando assim totalmente a cargo da mulher a responsabilidade pela criação e sustento dos filhos. Por outro lado, penso que a questão é de extrema complexidade além de ter potencial para ocasionar muitas disputas judiciais pela guarda dos filhos com a finalidade única de ficar com o imóvel. Em síntese, parece… Leia mais »

Eduardo
Eduardo
3 anos atrás

Devido aos fatos históricos de nosso país, eu acho ser justo sim, concederem inicialmente o título do imóvel à mulher. Não concordei em colocarem a guarda dos filhos como critério de escolha, pois caso um “pai” (ou vice e versa ) que nunca foi presente na criação do filho, nunca deu carinho e amor, decidir brigar pela guarda dos filhos, e tendo como interesse apenas a titularidade do imóvel, consiga a guarda, quem sairá prejudicado com essa história toda será os seus filhos.