Infidelidade Conjugal, eis a questão.

 

Ao longo dos tempos, narrativas envolvendo a infidelidade conjugal rendeu belas obras literárias. De Madame Bovary a Capitu, personagens imortais de Gustave Flaubert e Machado de Assis, as relações extraconjugais ocuparam destaque na trama. No caso da narrativa francesa, a infidelidade é escancarada e em Dom Casmurro, o autor deixa ao juízo do leitor a conclusão se houve ou não a infidelidade.

E no Direito? Quais as consequências jurídicas da infidelidade conjugal? Eis a questão.

No Brasil colonial, sob a égide das Ordenações Filipinas, uma relação adulterina, poderia levar a adúltera e o amante a pena de morte. Destaca-se que o gênero para se impingir a pena era uma especificidade do tipo penal, ou seja, a punição era para o sexo feminino.

Na vigência do Código Civil de 16, o adultério poderia ser alegado como justificativa para romper o casamento, a partir do momento que o vínculo perdeu seu caráter da indissolubilidade.

Criminalmente, o tipo adultério se consumava com o inequívoco ato sexual, quando era imposta pena de quinze dias a seis meses ao autor do crime. A descrimininalização do tipo ocorreu em 2005, por meio da Lei 11.106, que revogou o artigo 240, do Código Penal, deixando de punir a conduta.

No âmbito cível, ao constituir uma família, por meio do casamento e da união estável, os consortes estabelecem um compromisso recíproco de fidelidade. Trata-se de mais uma das regras convencionais, fruto de uma moral instituída que encontra forte rastro religioso e tem acento, ainda hoje, na legislação civil.

Assim, o Código Civil determina que a fidelidade conjugal é um dever de ambos os cônjuges na constância do casamento (art, 1566, I), e aos companheiros e companheiras enquanto perdurar a união estável exige-se lealdade (art. 1724)

Pabo Stolze (2014) sustenta que a fidelidade traduz desdobramento da noção maior de lealdade, embora com ela não se confunda. A lealdade, segundo o autor, é qualidade de caráter, implica um comprometimento mais profundo, não apenas físico, mas também moral e espiritual entre os parceiros, na busca da preservação da verdade intersubjetiva; ao passo que a fidelidade, por sua vez, possui dimensão restrita à exclusividade da relação afetiva e sexual.

Para analisar a infidelidade conjugal, necessário recordar que o arquétipo da família ocidentalizada foi construído a partir do modelo patriarcal, com relações heterossexuais, possuindo base monogâmica. Assim, somente o casamento legitimava a família. Na contemporaneidade, o arquétipo ganha novos contornos, e a pluralidade é a melhor forma de resumir a família do século vinte e um.

Mesmo em constante transformação e surgindo vários modelos de família, a infidelidade conjugal ainda é terreno fértil para discussão.

As relações paralelas sempre existiram, mas ficaram marginalizadas, até então, na grande maioria, as mulheres que eram estereotipadas e a elas era relegado todo e qualquer direito oriundo dos relacionamentos firmados fora do casamento. Sobre o tema, Maria Berenice Dias é enfática: difícil negar que o direito vem, premiar os homens por sua infidelidade.

Nos dias atuais, a possibilidade de reconhecimento de direitos advindos de relações paralelas ou simultâneas tem forçado a doutrina contemporânea a se posicionar e romper parâmetros e dogmas então entrincheirados.

Anderson Schereiber (2018) sinaliza que nenhum autor consegue explicar, de modo satisfatório, por que a violação desse dever de fidelidade implicaria sanção para o companheiro. Em outras palavras: por que a companheira, muitas vezes inconsciente do vínculo matrimonial do seu parceiro, deve ser privada de proteção jurídica na relação inegavelmente familiar que estabelece?

Os tribunais também tem sido provocados para que deem solução a conflitos familiares surgidos no seio de famílias paralelas. A propósito, é grande a expectativa em torno do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário (RE) 1045273, com repercussão geral reconhecida, em que se discute a possibilidade de reconhecimento de união estável e de relação homoafetiva concomitantes para fins de rateio de pensão por morte.

Nas ocasiões em que já se posicionou, o Superior Tribunal de Justiça nas demandas discutindo infidelidade conjugal com pedido de condenação por danos morais, tem posicionamento firme de que a simples infidelidade conjugal não é suficiente para configurar o dever de reparação de danos.

Outra questão também intrigante é a discussão envolvendo a pensão alimentícia do cônjuge ou companheiro que é infiel. Seria considerado indigno para receber a pensão alimentícia, nos moldes do parágrafo único, do artigo 1708, do Código Civil?

A doutrina mais balizada acredita que não. A infidelidade não excluiria o direito do cônjuge credor a receber os alimentos, pois as causas de indignidade estão restritivamente dispostas no direito sucessório, como a prática de homicídio, ou calúnia em juízo.

Contrariamente, o STJ, em voto da lavra da Ministra Maria Isabel Gallotti, registrou que a infidelidade ofende a dignidade do outro cônjuge porquanto o comportamento do infiel provoca a ruptura do elo firmado entre o casal ao tempo do início do compromisso, rompendo o vínculo de confiança e de segurança estabelecido pela relação afetiva.

Assim, a infidelidade ofende diretamente a honra subjetiva do cônjuge e as consequências se perpetuam no tempo, porquanto os sentimentos negativos que povoam a mente do inocente não desaparecem com o término da relação conjugal. Com esses fundamentos, a relatora votou pela perda do direito aos alimentos pelo cônjuge infiel.

Como se infere dos argumentos apresentados, tanto perante a doutrina quanto dos tribunais brasileiros, a questão está longe de ser pacificada. Assim, vamos aguardar a manifestação do STF prevista para dezembro próximo para conhecermos as cenas dos próximos capítulos.

Enquanto isso, caros civilistas, vamos ficar com a mensagem sempre atual do Ministro Ayres Brito, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração “é terra que ninguém nunca pisou”.

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Cristina Tadielo
Cristina Tadielo
4 anos atrás

Professora Mariana,

Tenho imenso orgulho de ter tido a honrosa oportunidade de, um dia, ser sua aluna!!
E, ainda que não mais seja, continuo aprendendo e admirando cada vez mais!!!

Gratidão!!

Cristina Tadielo

Raylander Marques
Raylander Marques
4 anos atrás

Sob a perspectiva conservadora do casamento ser uma obrigação que ambas as partes tem cumprirem uma prestação sendo fiéis até que a morte os separe, a infidelidade é uma ação negativa e contrária a boa-fé. A meu ver ao assumir o compromisso e ter possibilidade de rompe-ló sem agir de forma infiel, quem dar causa ao fato deveria responder pelos danos emocionais causados ao cônjuge lesado, assim seria observado a perspectiva da dignidade. Sob outra ótica há conceitos de relacionamentos mais abertos e estes por opção dos indivíduos a infidelidade não seria um problema, mas será que essa é a… Leia mais »

SONIA APARECIDA DUARTE
SONIA APARECIDA DUARTE
4 anos atrás

Ei, Professora querida!
Adorei esse assunto. Acho direito de família uma delícia, embora ainda Nei tenha estudado. Mas são histórias muito interessantes, que o Direito tem que se “contorcer” para dar conta! Mas é maravilhoso!

Robson Barbosa da Silva
Robson Barbosa da Silva
4 anos atrás

Parabéns professora Mariana por trazer à discussão um tema tão polêmico! Ainda que a infidelidade conjugal não seja mais tratada criminalmente desde 2005, a questão da pensão de alimentos ainda é algo que vezes ou outra torna-se tema de litígio, assim como litígios pela guarda de filhos e divisão de bens. É comum ainda o entendimento de que o cônjuge infiel não tenha os seus direitos garantidos. É exatamente nesses quesitos que residem as polêmicas acerca do tema e muito há que se discutir ainda. Quem sabe essa publicação não seja um bom começo?

Abraços, professores Mariana, Renê e Silvia.

Maria das Dores Rodrigues Jeber
Maria das Dores Rodrigues Jeber
4 anos atrás

Adorei ler esse artigo. Daqui a pouco vou estuda-lo e á tenho uma previa.
E acho que nas férias vou reler Dom Casmurro, que á li dezenas de vezes. A cada leitura a minha opinião muda.

ALESSANDRA ROSA DE PAULA DANTAS
ALESSANDRA ROSA DE PAULA DANTAS
4 anos atrás

Como professora de literatura, não poderia deixar passar em branco o meu comentário nesse excelente artigo. A questão da infidelidade conjugal é tão antiga quanto as relações humanas e a literatura vem ao longo dos anos tentando retratar a vida real sobre um prisma criativo que não deixa de ser filosófico, ajudando assim, os leitores a resolverem seus conflitos através da ‘catarse literária’. Obras como a de Machado de Assis, Dom Casmurro, aborda um dos aspectos mais geniais da literatura brasileira, que não há como decifrar o enigma criado pelo autor: afinal de contas, quem traiu quem? Capitu traiu Bentinho… Leia mais »

Gleyson Juan Carneiro Ramos
Gleyson Juan Carneiro Ramos
4 anos atrás

Excelente abordagem do tema! Impossível ao ler este artigo relembrar da história de Capitu e Bentinho. Comentar sobre este assunto é de fato essencial, levando em conta que em dias atuais tanto a definição de família quanto de casamento estão se modificando de forma relevante, afetando quem trabalha com a área. Notadamente, devemos citar a questão do machismo, em caso de alguns países, que a infidelidade proveniente do sexo feminino deve ser julgada como crime e em caso do sexo masculino é considerada normal.

Jordania de Souza Santos
Jordania de Souza Santos
4 anos atrás

Prezada professora, Adorei o texto professora ainda não estudei sobre direito de familia mas acho interessante a questão da pensão de alimentos ainda é tema de litígio, assim como a guarda dos filhos.e a parte mais interessante é onde a ministra Maria Isabel Gallotti fala que a infidelidade ofende a dignidade do outro conjugue, e eu concordo com ela pois seria muito difícil saber que foi traído pelo conjugue e ainda pagar pensão alimentícia, como ficaria a honra daquela pessoa? Eu acho que o traidor deveria sim perder o alimento pois como diz a ministra quando o ato de traição… Leia mais »

Luiz Gustavo
Luiz Gustavo
4 anos atrás

Infelizmente no Brasil as coisas demoram a acontecer,retrato disso é que o adultério somente deixou de ser crime no ano de 2005. O mais impressionante era a aplicação do Direito penal em uma questão moral. Infelizmente as mulheres que mais sofriam com essa lei ainda hoje encontramos situações na jurisprudência, em que a infidelidade feminina é justificativa para o comportamento violento do homem traído, exemplo disso é a tese da legítima defesa da honra.Mas com várias mobilizações o cenario está mudando, e estamos deixando essa cultura de lado. Belo texto professora,forte abraço.

Stephane Melquíades de Souza
Stephane Melquíades de Souza
4 anos atrás

Esse texto, me chamou a atenção dentre outros maravilhosos que estão nesse site, pelo fato do assunto remeter a algo, que além de estar no nosso dia a dia, mostrar que nossos atos e ações são livres sim, mas, desde que não cause danos em outras pessoas. Vale ressaltar que a medida tomada pelo STJ e STF tentam dar garantia e segurança aos atos jurídicos, mesmo sendo de relacionamentos que tentam ser preservados, tanto na boa fé, quanto subjetiva dos cônjuges envolvidos num laço matrimonial. É interessante, mas poucas pessoas sabem, que tal ato proferido pelo STJ e STF, garantem… Leia mais »

Cíntia Ferraz Muniz
Cíntia Ferraz Muniz
4 anos atrás

Dentre os vários maravilhosos textos deste blog, gostaria de fazer um comentário em relação a infidelidade conjugal, a infidelidade conjugal não é obstante a dor íntima e os transtornos que possa causar à pessoa traída, não configura, por si só, ato ilícito apto a ensejar indenização, ressalvadas as situações extremas de exposição do consorte enganado a vexame social, a constrangimentos ou a humilhações, com efetiva violação aos direitos da personalidade.   Atentamos ao código cívil:   “(…) 3. Dispõe o art. 1.566 do Código Civil, que são deveres de ambos os cônjuges a fidelidade recíproca (inc. I), bem como o… Leia mais »

Elisaine Daiara de Siqueira Sousa
Elisaine Daiara de Siqueira Sousa
4 anos atrás

A infidelidade é uma prática recorrente, desde tempos remotos, devido esse fator, no Brasil a infidelidade, que é cada vez mais comum, deixou de ser uma conduta punível na esfera penal, até por que na prática, o judiciário, há muito tempo não era provocado para penalizar alguém pelo crime de infidelidade. A infidelidade é tão comum que o Direito Penal usado em caráter subsidiário não abarcava mais essa temática. Por outro lado a infidelidade gera efeito no campo Civil, no Direito das Famílias acarretando assim o divórcio. A infidelidade além do sofrimento psíquico, em determinadas situações, gera profunda humilhação o… Leia mais »

HUDSON FERNANDES ARCANJO RAFAEL
HUDSON FERNANDES ARCANJO RAFAEL
3 anos atrás

Sobre o que o  Ministro Ayres Brito disse, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração “é terra que ninguém nunca pisou”. E o que é lamentável mesmo é saber que a parte supostamente traída tem elevado o grande o número de aumento do feminicídio. Mais recentemente assistimos o triste caso da tragédia que tirou a vida da juíza Viviane Vieira morta pelo seu ex-marido por aceitar o fim do término do relacionamento. Eu sei pela reportagem que ele ficava pedindo dinheiro a ela por vários motivos e ela achou que… Leia mais »

HUDSON FERNANDES ARCANJO RAFAEL
HUDSON FERNANDES ARCANJO RAFAEL
3 anos atrás

Sobre o que o  Ministro Ayres Brito disse, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração “é terra que ninguém nunca pisou”. É lamentável mesmo saber que a parte supostamente traída tem elevado a cada dia que passa ao um grande o número de aumento de violência doméstica e por fim ao feminicídio. Mais recentemente assistimos o triste caso da tragédia que tirou a vida da juíza Viviane Vieira morta pelo seu ex-marido por aceitar o fim do término do relacionamento. Eu sei que pela reportagem o ex-marido ficava pedindo dinheiro… Leia mais »

Danielle Regina Queiroz Barbosa
Danielle Regina Queiroz Barbosa
3 anos atrás

Através da metodologia aplicada pode-se concluir que, mesmo não se tratando mais de crime em âmbito penal, as traições, além de infringirem o princípio da honra disposto pela Constituição Federal, geram graves danos e abalos sociais e psicológicos a parte não culpada, sendo passíveis inclusive de indenização perante o Poder Judiciário.